Afro-descendência parda: identidade e autoestima, não seleção racial.
- Evandro Prestes Guerreiro

- 24 de jan. de 2024
- 3 min de leitura
Quando me percebi estava diante da comissão étnico-racial para me qualificar como pessoa apta a se autoidentificar parda. Uma experiência singular (sem dizer que foi constrangedor), uma vez que precisava justificar o propósito de minha autoidentificação como pessoa afrodescendente. A comissão era composta 100% de membros de cor preta, sendo duas mulheres e um homem. Dentro do contexto de Estado Democrático de Direitos, a comissão deveria ter pelo menos um branco como membro, já que a questão de fundo é a justiça e não a seleção racial.
O Brasil, segundo dados do Censo 2022 (IBGE) possui 45,3% de pessoas que se declaram pardas, 2% a mais que a população branca e, se juntarmos os pardos, pretos e indígenas, totaliza-se 56,3% de brasileiros. Quando comparamos ao Censo 1991, as pessoas que se declaravam brancas somavam quase 53%, enquanto os pardos chegavam a 40%. No Censo 2000, os brancos já eram um pouco mais de 50%, enquanto os pardos já oscilavam para perto dos 41%. A hipótese razoável que extraímos é que os pardos com dúvidas na ancestralidade parece aos poucos, superarem a condição de complexo de vira-lata e aceitarem sua genética miscigena como um valor superior e não de inferioridade típica do racismo estrutural no Brasil. Nelson Rodrigues (1993) descreveu o "complexo de vira-lata" como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”, grifaria que além do "resto do mundo", inclua-se o brasileiro preto, pardo e indígena, como expressão original da etnia brazuca, mas, também, imigrantes de outras nacionalidades, com suas experiências brasileiras de racismo estrutural e exclusão social.

A autoidentificação tem a ver com a autoestima pessoal diante da diversidade étnico-cultural e miscigenação, constituindo-se como reflexão introspectiva de afirmação da identidade racial e política entre a visão aristocrática da ancestralidade coronelista e o pensamento democrático e inclusivo da contemporaneidade, portanto, não é uma seleção étnico-racial ou apartação genética dilemática. Roberto DaMatta (1997), apresenta como o dilema entre "ser uma sociedade aristocrática ligada à Igreja e ser uma sociedade multiétnica e igualitária”, no seu estudo "Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro". Senti-me diante de tribunal étnico em 2024. Minha autodeclaração como pessoa parda está na herança familiar, com minha avó por parte de pai ser negra e meu avô português ser branco, típica afrodescendência brasileira, onde europeus mantiveram relacionamento sexual com nativos da floresta, negras, e caboclas, sob a chancela da Igreja Católica Apostólica Romana e da Coroa portuguesa.
Na Amazônia, especialmente no Estado do Pará onde nasci, da população de quase 5,7 milhões, 70% se autodeclararam pardas no Censo 2022 ou seja, em cada 10 paraenses, 7 são pardos, equivalente aos 67,2% de pardos residentes na região norte do Brasil, apontados no mesmo Censo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) apresenta que todos os grupos, incluindo étnico-raciais (com a mesma descendência e identificação cultural), passaram a ter seus direitos e dignidades reafirmados, que no Brasil, a Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas de 2012, legitimou como direito social e acesso às universidades. O que está em questão são os direitos histórico-sociais de liberdade ampla e irrestrita, que fazem justiça aos 353 anos de escravidão, finalizados oficialmente com a Lei Áurea de 13 de maio de 1888. Assim, as leis são para formalizar a sociedade e estabelecer a orientação ética educativa na família, escola e comunidade, servindo de guia para formar gerações com pensamento crítico, reflexivo, inclusivo, multicultural e multiétnico.

A sociedade complexa se chama povo brasileiro. As cotas visam a acabar com a desigualdade racial e o racismo estrutural. Obviamente, reduzir a qualidade étnico-racial ao critério da autodeclaração é no mínimo ingênuo, uma vez que seria acreditar na existência do ser humano brasileiro plenamente honesto e ético, livre das influências mundanas e maliciosas, como se observou na "bozolóide" tentativa de golpe de Estado que culminou no 8 de janeiro. Então, após a referida Comissão de Heteroidentificação julgar que não sou pardo, indeferindo meu pedido por "ausência de homologação à sua autodeclaração", em entrevista via plataforma digital, me senti desrespeitado em meus direitos e a solução racional foi apresentar a interposição de recurso, na esperança de fazer prevalecer meu direito como pardo, não pela seleção racial em si que foi o meu sentimento, mas, substancialmente, por identidade e autoestima.
Referências
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6a. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
RODRIGUES, N. Complexo de Vira-latas. À sombra das chuteiras imortais: Crônicas de futebol. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.








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