Serviço social - ato II: observação, linguagem e verdade.
- Evandro Prestes Guerreiro

- 16 de jun. de 2024
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A mensagem era intitulada "serviço social fora da caixa", aparentemente nada demais ou de menos, entretanto, quando fui ler, tratava-se de um curso que focava oito palavras que tinham a forma de qualificar os fenômenos sociais em seu tempo histórico, como exemplo, na década de 1980, falava-se "menor" para se referir atualmente a "criança e/ ou adolescente". Antes era "mendigo", hoje, denomina-se “pessoa em situação de rua" e assim, a mensagem se referia a outras seis palavras para que o assistente social começasse a pensar "fora da caixa". Antes de avançar na reflexão, que "caixa" seria essa? Aquela que propôs progresso e o crescimento econômico que levaria a qualidade de vida e bem-estar, com discurso e políticas públicas desenvolvimentistas? Ou a que projetou justiça social e oportunidades de acesso, mas promoveu a universalização da pobreza e da desigualdade em escala mundial? E mais ainda, refere-se a “caixa” da alienação internacional do trabalho e do modo de produzir, como fonte da criatividade que colocou o ser humano no topo da cadeia alimentar?
A experiência de elaborar estudos partindo da aprendizagem aplicativa do conhecimento científico, com o uso do método comparativo por exemplo, que serve de guia para o desenvolvimento de pesquisas na antropologia cultural, principalmente pela “observação participante”, recurso que Bronislaw Malinovski [1], antropólogo polonês publicou em Argonautas do Pacífico Ocidental (1978), abordando com domínio peculiar em suas reflexões sobre o estudo de caso realizado “in loco”, no lugar onde a cultura do povo, se expressa de forma relativista, diversa e com grau de complexidade que impossibilita compreender o fenômeno relacionado ao comportamento e as atitudes das pessoas sem interagir com sua realidade. Franz Boas [2], atento às mudanças que ocorriam em seu tempo no final do século XIX, defendeu em seu estudo sobre o relativismo cultural que o comportamento das pessoas decorre de suas escolhas diante dos desafios da realidade vivida e não de sua herança genética, opondo-se a ideia de naturalização da sociedade como defende a visão evolucionista ou darwinismo social, que potencializou o extremismo e o racismo da forma catastrófica e cruel que se conhece pelos atos da política de uma Alemanha nazista, mergulhada nas profundezas da ideologia ariana e julgada pelo Tribunal de Nuremberg [3], como criminosa contra os direitos humanos. Mesmo sendo meados do século XX, a questão estava estruturalmente vinculada a linguagem do debate que ocorria no século XIX, entre os intelectuais e os meios religiosos, para saber se os negros e os indígenas tinham ou não alma, tema que Franz Boas resumiu ao dizer que a “linguagem é essencial para se entender a cultura de um povo”, quer dizer, se negros e indígenas estão vivos e se comunicam pela linguagem, então, assim como todos os animais vivos, incluindo o ser humano branco, possuem alma.
São séculos de exploração e opressão do trabalhador pela elite dominante no seu tempo sócio-histórico, tecno-econômico e político-cultural, que não serão as palavras ou decretos burocráticos que mudarão a cultura de preconceitos e racismo estrutural presente na sociedade brasileira, algo que o Projeto de Lei 1904/24 [4], equiparando o aborto realizado após 22 semanas de gestação, ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. Parece alguma coisa óbvia, estabelecer este raciocínio, entretanto, com as limitações que o ser humano impõe em sua rotina, delimita o lugar como estratégia de preservação, como analisa Charles Darwin [5], em evolução da espécie, acabando por focar a instintiva sobrevivência adaptativa.

O fato observado que deveria ser descrito e caracterizado em sua fidelidade é corrompido na análise comprometida com interesses muitas vezes ocultos, chegando até na dimensão da “invisibilidade”, como qualifica o pensamento social contemporâneo. Se a troca de palavras representasse a plenitude real seria interessante, por outro lado, como a psicanálise assertivamente comunica as ideias de Lacan [6] em seus seminários, o que leva uma pessoa insistir em "falar a verdade mentindo?” Seria a convicção da sua verdade legitimada pela suposta maioria alienada? Ou seria a ingenuidade ignorando os fatos?
A rede social "zumbizou" a narrativa e a colocou no lugar fragilizado da ficção imagética e fantasiosa de pequenos interesses. Sem entrar no mérito, me disseram para trocar "transformação social" por "mudança social", considerando que o assistente social não transforma a sociedade, mas, as pessoas são que o fazem, então, conclui que se as palavras mudassem nosso modo de pensar e consciência da realidade, a justiça e a inclusão social, a paz e a sustentabilidade ambiental, econômica, cultural política, tecnológica proposta pelo pensamento de "ideal positivista" já deveria ter ocorrido nesses últimos 40 ou 50 anos, mas, não aconteceu.
É a realidade factual, concreta e objetiva que muda nosso modo de pensar, as palavras e sentimentos socioafetivos. Resta saber se a mudança da terminologia linguística expressa a realidade mudada ou se representa mais uma tentativa frustrada de legitimação do poder falacioso do discurso. Os assistentes sociais (e aqui me incluo), se encontram no nível de compreensão do método crítico de intervenção na realidade e, assim como os acadêmicos recém ingressados no ensino superior, possuem sérias dificuldades para descrever o objeto observado de forma imperativa e distanciada, uma vez que são carentes da base estrutural de formação do pensamento social. A análise do fato é ideologizada, opressiva e comprometida com os interesses de partes menores da sociedade. Com o comprometimento socioemocional do olhar pesquisador, o resultado dificulta a caracterização contextualizada e focada na realidade. Assim, aprender como conceituar o que se observa, antes mesmo de trocar a forma e a superficialidade das palavras, será preciso compreender o conteúdo da causa e razão da existência do serviço social.
Referência
[1] MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
[2] BOAS, Franz, 1858-1942 Antropologia cultural / Franz Boas; textos selecionados, apresentação e tradução, Celso Castro. - 2.ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[3] ENCICLOPEDIA DO HOLOCAUTO. Os Julgamentos de Nuremberg. Acesso em 16/ 06/ 2024. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/the-nuremberg-trials
[4] CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 1904/ 2024. Projeto de lei prevê pena de homicídio simples para aborto após 22 semanas de gestação. (Agência Câmara de Notícias). Acesso em 16/ 06/ 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1071458-projeto-de-lei-preve-pena-de-homicidio-simples-para-aborto-apos-22-semanas-de-gestacao/
[5] DARWIN on-line. Acesso em 16/ 06/ 2024. Disponível em: https://darwin-online.org.uk). Ler “O que é a teoria da evolução de Charles Darwin e o que inspirou suas ideias revolucionárias”. BBC Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-50525124
[6] LACAN, Jacques. Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.








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